Olá, pessoal, tudo jóia com vocês?
Esse ano tive a honra IMENSA de conhecer o escritor Enio Pereira. Posso dizer tranquilamente que o livro "Divagações de Sangue" é um dos livros mais legais que já vi/li, e recomendo a leitura a todo mundo.
Fiquei muito feliz que o Enio topou fazer essa entrevista.
Além da literatura, eu e o Enio temos outro ponto em comum: o Horror Punk, sendo ele o empresário da banda Os Desconhecidos, a melhor coisa que apareceu no rock nacional nós últimos anos!
Sem mais enrolação, vamos lá!
1- Enio, antes de tudo, como você se apresentaria para alguém que ainda não conhece você e seu trabalho de escrita?
Começo agradecendo pela oportunidade de conceder esta entrevista; fico realmente honrado e lisonjeado. Sobre me apresentar, bem, o melhor a se fazer nestas horas é ser breve. Poderia falar algo assim: “Olá, meu nome é Enio Pereira, cheguei aqui em 1971, já faz algum tempo, e... Não é de hoje que me atrevo a escrever, porém, atualmente, sinto uma necessidade maior de compartilhar com todos aqueles que assim quiserem um pouco de minha tacanha vivência, criação e humanidade, por isso aqui estou”.
2- Você lançou o livro "Divagações de Sangue" pela editora Chiado Books, em uma edição muito bacana. Como foi o processo de escrita dessa obra em específico?
Foi uma boa oportunidade oferecida pela Chiado. A coisa foi negociada aos poucos e quando se tornou viável, não hesitei e trabalhamos em conjunto para lançar o livro. A respeito da escrita, foi um processo não linear, digamos assim; aliás, tal fato se refletiu na própria narrativa apresentada. Pouco depois de ter chegado a SP (sou natural do Rio Grande do Sul) fui trabalhar em um hospital. Isso foi em fins de 2011. Por algum motivo comecei a pensar sobre vampirismo em outra perspectiva, mais existencial; também me vi pensando no que se veiculava naquele momento em relação ao universo vampírico no cinema, por exemplo, e, sendo sincero, não gostava nada daquilo (sem citar nomes). Já se vão uns dez anos e fica difícil para mim precisar qual foi o elemento primal que desencadeou a escrita, mas girava em torno disso e também do fato de eu me deparar com situações mórbidas e angustiantes no hospital. Falando mais concretamente sobre o “escrever” em si, lembro de começar os primeiros apontamentos em umas folhas para rascunho e anotações de menor importância. Em um lado o papel era impresso com o nome de pacientes e seus leitos, no outro, em branco, escrevi as primeiras notas. Fazia isso para não perder certos tópicos que me vinham à mente, mas já neste momento a escrita foi se encadeando. Em 2006 escrevi um texto altamente inspirado em Clarice Lispector, não tão extenso, mas que considero como um romance psicológico (chama-se “Paisagem pré-histórica”), pois o espaço diegético em que o enredo se desenvolve é em dimensão psíquica, dentro da mente do protagonista. A princípio pensei em fazer algo do mesmo tipo, mas tendo como mote o vampirismo e – talvez – a licantropia. Na época não dispunha de um laptop ou celular com tela de toque, nem em casa, nem no trabalho, por isso estas anotações foram se avolumando e passei a guardar a papelada cheia de garranchos e parágrafos confusos (minha letra é horrorosa) em uma sequência do que viriam a ser os capítulos. Aos poucos, meu protagonista foi do mundo psíquico ao tangível, passando pelo etérico, sugestivamente onírico e – também – sobrenatural. Estes papéis ficaram parados certo tempo, ainda confusos, até que adquiri um laptop velho e lento que utilizei como máquina de escrever; com isso dei sequência ao trabalho transcrevendo o texto (e nisso melhorando-o e o expandindo) para a memória do PC, revisando... Era uma máquina antiga, como já falei, e nos lugares onde trabalhei, assim como em minha casa, nos anos de 2012, 2013 e 2014, o acesso à internet era mais difícil e o laptop não se prestava a isso, o que me obrigou a escrever quase que exclusivamente dependendo de minhas memórias, de modo que precisei fazer um trabalho posterior bem extenso de pesquisa para corrigir óbvios deslizes e imprecisões. Em fins de 2014 decidi que o texto estava concluído e resolvi procurar editoras, o que foi muito frustrante, pois praticamente ninguém se interessou. As propostas que se apresentavam eram inacessíveis para mim devido à falta de recursos financeiros. Estes fatos me entristeceram e deixei o livro de lado, até que uma falha no HD do PC quase fez eu perder o texto, assim como outras coisas que escrevi: letras de músicas, contos, anotações... consegui recuperar o livro e o imprimi, ele e outros escritos. Passou-se mais um período de clausura, mas a vontade de lançar o texto nunca sumiu. Minha esposa, ciente disso, viu que a Chiado Books estava recebendo originais e me incentivou a procurar por esta editora.
3- Quais as principais inspirações que você apontaria nesse trabalho? Não apenas literárias, mas de outras mídias também?
As inspirações para este livro se processaram em mim com a mesma fluidez que ocorre em relação a tudo que faço em termos de criação: elas vieram de todos os lugares. Aprendi a ler tarde. Minha mãe era analfabeta e meu pai estudou até a terceira série do que hoje chamamos de ensino fundamental; sou oriundo desta situação (de fragilidade social). Éramos uma família pobre; meus pais se separaram quando eu tinha sete anos de idade; essa turbulência toda afetou meus estudos, mas nunca minha curiosidade e capacidade de observação. Lembro de muita coisa de minha infância: do que ouvia dos adultos, do que assistia na TV preto e branco e do que conheci através do rádio. Disso tudo vieram minhas maiores influências na primeira fase da vida. Tive infância pobre e vulnerável, como relatei acima, e esta vivência de privações e exposição a perigos tanto de natureza social quanto os mais diretos, “das ruas”, foi algo que me marcou profundamente, nem sempre de forma negativa, pois a necessidade também é uma oportunidade de aprendizado. Da pré-adolescência até a fase adulta me interessei por quadrinhos, cinema, teatro, literatura, política e Rock and Roll. Os Anos 80 foram intensos, sombrios e medonhos, ao menos sob meu ponto de vista, pois me via assombrado por filmes distópicos nas telas grandes (Mad Max, Robocop, Exterminador do Futuro...), música eletrônica, Heavy Metal, Punk Rock, Gothic Music, cores intensas nas roupas e a possibilidade real de uma terceira guerra mundial eclodir. Assustando-me ou não, o fato é que adorava estas coisas e sigo marcado por tudo isso até hoje. Contudo, devo admitir que três obras literárias me influenciaram diretamente na construção deste Romance, são: “O Principe” (Maquiavel), “A Metamorfose” (Kafka) e “O Elogio da Loucura” (Erasmo de Rotterdã). As demais influências que posso considerar pontuais são o “Drácula” de Stoker (obviamente) e os filmes da Hammer com Christopher Lee.
4- Qual o tema principal do "Divagações de Sangue"?
O tema principal é o vampirismo, porém, sob a perspectiva particular de um indivíduo, um vampiro, que reflete sobre si mesmo, sobre sua concretude (ou não) e sobre a realidade. Em nível subjacente, atrevo-me a dizer que se trata de uma alegoria para tratar de aspectos da natureza de nós mesmos enquanto espécie, visto que a percepção humana da realidade que nos circunda, em plano macro e microcósmico, é tudo o que temos de fato para especular o que quer que seja sobre a existência.
5- Voltando um pouco no tempo, você escreveu uma dissertação sobre Augusto dos Anjos... eu sou maluco por esse poeta e acho que tem tudo a ver com o tema, mas, na sua opinião, o que o Augusto nos ensina sobre o horror?
Sou um apaixonado pela literatura universal e vários autores me impressionam, mas, meu caro, com Augusto dos Anjos a vibração é outra, por isso a escolha de sua obra para meu trabalho de mestrado foi óbvia. Certo vez um prosador, falando de Ovídio (se não me engano) disse a seu confrade: “Como o poeta pode saber o que estou sentindo?”... Sempre que me questionam quanto a Augusto eu lembro disso e do quanto tal questionamento faz sentindo em se tratando do poeta paraibano. A poesia fala conosco em nível mais profundo e nos revela nossa própria dimensão e realidade; todo poeta nos propõe este mergulho, faz isso conosco, porém, a obra augustiana parece nos falar não apenas em nível sub-reptício, mas em todos os níveis, possíveis e impossíveis. É algo muito pujante, emocional, psíquico, profundo e aterrorizante pelo simples fato de que ele - Augusto -, quando fala da morte, dos vermes e do pó, nos lembra de forma radiante que este é o nosso destino final, trágico, porém, inevitável. A morte é o destino de tudo, de nós ao cosmos, tudo vai morrer um dia. Assim, o genial poeta nos demonstra a realidade inexorável e esta é a força motriz não apenas de sua obra, mas do horror pleno, absoluto e universal.
6- Qual seria uma boa trilha sonora para acompanhar a leitura do seu livro?
Não vou falar muito quanto a isso, pois não pretendo direcionar aquele que me ler. Farei algumas sugestões esparsas, mas não aleatórias, e deixo o restante para os caros leitores:
- “Os Planetas” – Gustav Olst / - “Descending Angel” – Misfits
- “A Night Like This” – The Cure / - “Black Celebration” – Depeche Mode
- “Here Today/Gone Tomorrow – The Ramones / - “Necrophilia” – GBH
- “First Last And Always” – Sisters of Mercy / - “Decades” – Joy division
- “A Tempestade” – Legião Urbana / - “Ódio” – Restos de Nada
- “Love in a Void” – Siouxsie and The Banshes / - “War Pigs” – Black Sabbath
- “Longe” – Plebe Rude / - “Major Tom” – Peter Schilling
7- Quais os planos para o futuro, Enio?
Em relação ao que escrevo, meu maior desejo seria poder fazer isso sem obstáculos, mas para tanto eu teria que vender bem e com isso viver de literatura, algo que me parece improvável. Seria perfeito, pois me dedicaria em tempo quase integral a vários projetos artísticos, a maioria literários (dedicaria tempo também à composição e produção musical). Quem estiver lendo isso agora, por favor, me dê uma chance, compre meu livro, divulgue para que outros comprem e com isso passo a ter a escrita como profissão e prometo trabalhar com afinco para lhes oferecer o melhor (risos). Tenho um livro de contos pronto e quero muito lançar. Tenho outros trabalhos inéditos e gostaria de publicar todos, assim como dar andamento a outros projetos: contos e textos mais extensos; já escrevi poemas, mas desisti deles, pois vejo-me como péssimo poeta, no entanto, talvez eu tente novamente (risos).
8- Enquanto escritor, a pandemia lhe afetou de alguma forma no seu processo criativo?
Sem dúvida. Acima falei de um livro de contos que preparei, chama-se “Abissal”, e um destes textos relata uma situação que se passa em plena pandemia; conta um fato insólito, sobrenatural, vivido por um sujeito que é praticante de Judô e que está mergulhado em problemas muito sérios. Escrevi outro conto, que não é de terror e não faz parte de “Abissal”, que também se passa em meio à pandemia e é um relato de um sujeito pobre e semiletrado que busca emprego e demais meios para a sobrevivência de si mesmo e de sua família, sofrendo todos os reveses deste processo em um contexto como o que vemos agora, diante de um pais - Brasil - literalmente rasgado ao meio sob perspectivas fascistas.
9- Se acontecesse um Apocalipse zumbi, e você tivesse que ficar trancado dentro de casa sem sair, quais livros não poderiam faltar na estante da sala?
Junto aos livros, HQ’s e alguns vinis viriam bem a calhar, acredito. Mais alguns VHS, DVD’s, K7’... estas coisas de velho (das quais não vou falar). Sobre os livros, teria junto de mim alguns que não li: “A montanha mágica” (Thomas Mann), “Finnegans Wake” (Joyce); outros que não ainda finalizei a leitura: “Dom Quixote” (Cervantes), “Ulisses” (Joyce), “O nome da Rosa” (Humberto Eco), a série “Sherlock Holmes” de Doyle, “O nascimento da tragédia” (Nietzsche) e os de cabeceira: “Eu” (Augusto dos Anjos), “A arte da guerra” (Sun Tzu), “A Arte da prudência” (Gracian), tudo do Maiakosky, Kafka, Oscar Wilde, Leminsky, Isaac Asimov, Herman Melville, Ana C. Cesar, Poe, Lovecrafth, Stephen king, F. Paul Wilson, filósofos gregos e alemães e outros que não lembro agora.
10- E aqui um espaço livre para você falar o que quiser; o que quiser MESMO.
Yeah! Gostaria de falar direto ao coração das pessoas, ou projetar minha fala por telepatia, como faria o professor Xavier (talvez eu seja um adulto infantilizado), e dizer a todos que leiam, leiam muito, pois a civilização precisa disso, precisa de lucidez, que só o conhecimento proporciona e a leitura nos traz o real conhecimento. Contudo, alerto que o ato de ler precisa ser desmistificado. Quem diz que não gosta de ler, ou que não lê, não percebe que isso é uma inverdade porque não se fala a respeito do ato de ler como o que ele realmente é. Ler é interpretar e, principalmente, sentir o mundo, a existência e a realidade. Lemos o tempo todo: quando nos olhamos no espelho ou pela janela, quando olhamos para o céu, quando percebemos as árvores, os animais, o vento, quando sentimos solidão, paixão, calor ou frio, quando ouvimos... tudo isso é ler no sentido mais amplo e real. Temos que exercitar essa nossa incrível capacidade como a grande experiência existencial a que temos direito, como o que a vida tem de melhor para nos proporcionar, aprendendo cada vez mais e crescendo com base nesta dádiva, tanto como indivíduos quanto como sociedade.
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