terça-feira, 7 de julho de 2020

Conto: Espantalho

Galera, segue aqui um conto fantástico escrito pelo Simões lopes. Misturando horror, fantasia urbana e rural, uma aula de escrita e criatividade!


Espantalho


O milharal se estendia para além dos limites da vista do pequeno Geraldinho. Ele parou em frente ao boneco empalhado, que trajava um chapéu roto e roupas escuras e esfarrapadas, amarrado numa pesada estaca de madeira.
— Prá que serve os espantalho, Tio Zezinho?
José de Almeida Pires, o Zezinho, parou de tragar seu cigarrinho de palha por um instante, e olhou com carinho para o neto de sua falecida irmã.
— Para espantar os pássaros que vêm aqui comer o milho. Eles vêem os bonecos e pensam que são homens vigiando, e aí vão embora, com medo.
Geraldinho olhou com atenção para os vários espantalhos que se postavam nas várias estacas fincadas em linha.
— Passarinho é bicho bobo, né? Têm medo de um boneco feio...
Zezinho soltou uma gargalhada com a observação da criança, e o chamou de volta para casa. O capinzal chacoalhava com a força de uma ventania fria, e já começava a cair uma garoa fininha. E o menino voltou correndo para casa, pois sabia que sua mãe havia preparado um bolo de fubá, cujo aroma já podia ser sentido no ar.
* * *
O relógio da fazenda marcava exatamente meia-noite quando um estranho casal surgiu andando pelo milharal. Ambos eram jovens, altos e de cabelos claros.
Caminhavam com a arrogância de quem se sente forte o suficiente para fazer o quiser. À medida que caminhavam, as ervas em seu caminho murchavam e definhavam drasticamente. Chamas alaranjadas saltavam de seus dedos, formando uma espécie de aura nebulosa ao seu redor.
Apesar da aparência jovem, ambos eram antigos, muito antigos. A moça de cabelos loiros e olhos verdes que vestia um casaco negro, por exemplo, era seguramente mais antiga que a própria fazenda. A tempestade forte que caíra no final da tarde já havia passado, embora o chão ainda estivesse úmido, com muitas poças atrapalhando a passagem. Eles não vieram atrás do milho, nem das vacas, nem dos porcos.
Não estavam preocupados com a arquitetura da casa, ou em saber se o celeiro estava cheio. Eles estavam atrás de outra coisa. Aquela pequena fazenda ocultava algo incrivelmente maior. O rapaz, que também vestia trajes escuros como a noite, indicou uma direção para sua companheira. Eles cerraram os olhos, e começaram recitar uma espécie de mantra. Continuaram em sua marcha implacável. No caminho, espigas de milho eram instantaneamente carbonizadas, tufos de grama desintegravam-se com fagulhas incandescentes, e podia-se ouvir alguns animais berrando ao fundo.
Parecia que eles estavam pressentindo algo extremamente perigoso e maligno vindo em sua direção. A moça parou por um instante, como se aspirasse o ar campestre. Então seu parceiro ouviu uma pequena e breve mensagem telepática:
“Posso sentir as reminiscências da Egrégora. É aqui.”
Os dois concentraram-se para o ataque, e correram na direção do celeiro, preparando-se para passar por entre as estacas com os toscos espantalhos.
Quando a moça passou ao lado de um dos bonecos de palha, instantaneamente sentiu uma barreira invisível empurrando seu corpo para trás, com violência. O rapaz de barba ruiva demorou apenas dois segundos para perceber do que se tratava. Tarde demais.
Bem à sua frente, o casal viu toda uma fileira de treze espantalhos abrindo os olhos. Olhos que não deveriam existir.
Mas os improváveis olhos os fitavam agora, brilhando como pedras preciosas de um azul-violeta forte. Os homens empalhados desceram das estacas e cercaram os dois invasores noturnos. O que quer que existisse naquela fazenda, era muito bem protegido.
E raios azulados cortaram a escuridão da noite, avisando aos dois jovens que a Egrégora tinha guardiães. E que visitantes, especialmente daquele tipo, não eram bem vindos. Os bonecos eram muito eficientes em manter as aves distantes. Mas para este
outro tipo de invasor, afastar não era o bastante.
Era necessário destruir.
* * *
Geraldinho não conseguia dormir. A chuva caía forte lá fora, e os trovões pareciam querer destruir a casa com seu barulho retumbante. Seu tio-avô abriu a porta, e sentou-se à cabeceira da cama.
— Pode dormir, Geraldinho, a tempestade já está passando...
Sentindo-se protegida, a criança finalmente foi adormecendo, embalada pelo acalento do sábio tio. E José lançou mais um olhar pela janela.
Ele sabia que não havia tempestade nenhuma. Ele era um homem sábio, muito sábio. Um homem que não entendia só de agricultura.
Ele tinha certeza que, lá fora, os espantalhos seguiam cumprindo a sua função

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